Politica

A representatividade e participação como cultura democrática

As últimas eleições, consideradas as mais desafiadoras da história democrática do país, deixaram marcas significativas quanto à participação popular. Registrou-se o maior número de votos da história, com uma inédita redução da abstenção no segundo turno em relação ao primeiro, alcançando o menor índice desde 2006. Além disso, houve uma expressiva diminuição dos votos brancos e nulos, atingindo o patamar mais baixo dos últimos 20 anos. Um dado surpreendente foi o aumento recorde de novos títulos de eleitor emitidos para jovens entre 15 e 18 anos, com um acréscimo de mais de 1 milhão de jovens engajados no compromisso mais direto e fundamental da democracia: o voto. Esses dados refletem uma efervescência na participação democrática que não pode, de forma alguma, ser desperdiçada.

Os números evidenciam uma oportunidade singular para, após o desfecho do processo eleitoral, direcionar esforços para um plano abrangente que assegure a continuidade da participação democrática, não se restringindo apenas aos anos eleitorais. Nesse contexto, é essencial encurtar a distância entre a sociedade civil e as esferas do poder público, buscando resgatar a confiança da população brasileira na democracia, que tem enfrentado ataques sistemáticos, sobretudo nos últimos quatro anos. Para tanto, é imprescindível adotar uma abordagem abrangente, englobando todos os setores da sociedade e os Três Poderes, com o intuito de efetivar mecanismos representativos. Dessa maneira, será possível garantir que todas as vozes sejam ouvidas e consideradas nas tomadas de decisão, substituindo o repúdio à democracia e a preferência por alternativas autoritárias pelo sentimento de pertencimento e responsividade.

Uma cultura democrática sólida valoriza a participação cívica e promove o engajamento dos cidadãos em todas as esferas da vida política, desde as eleições até a implementação e qualificação das políticas públicas, e está intrinsecamente ligada à noção de representatividade. Em uma democracia plena, os representantes eleitos devem espelhar a diversidade da sociedade que representam. A representatividade vai além da presença de pessoas diversas nos poderes legislativo, executivo e judiciário. Embora seja crucial ter representação substantiva da diversidade nos órgãos de governo, é igualmente importante garantir mecanismos que permitam a participação direta dos cidadãos na tomada de decisões.

Os escassos mecanismos de promoção da representatividade através da ampliação da diversidade na política institucional, ao invés de serem aperfeiçoados, são frequentemente contornados pelos próprios representantes. Embora as últimas eleições tenham registrado um número sem precedentes de candidaturas de pessoas negras e mulheres, nos primeiros meses deste ano, o novo Congresso aprovou uma anistia para os partidos políticos que descumpriram as leis de cotas de gênero durante o processo eleitoral. Essas normas exigem a destinação mínima de 30% do fundo eleitoral para tais candidaturas. A conhecida PEC 9/2023, também chamada de PEC da Anistia, é o exemplo mais recente da forma alarmante como o poder público pode minar a eleição de candidaturas diversas e tornar quase impossível o avanço da representatividade.

É comprovado que a representação substantiva, ou seja, a presença de grupos minorizados nos espaços de poder, desempenha um papel crucial para promover um maior engajamento desta parcela da população em outras esferas da democracia, como o ativismo cidadão e o desenvolvimento de lideranças em âmbito territorial. Portanto, é imprescindível que a diversidade seja devidamente refletida nos espaços de tomada de decisão para garantir uma cidadania ativa e inclusiva.

EMBORA SEJA CRUCIAL TER REPRESENTAÇÃO SUBSTANTIVA DA DIVERSIDADE NOS ÓRGÃOS DE GOVERNO, É IGUALMENTE IMPORTANTE GARANTIR MECANISMOS QUE PERMITAM A PARTICIPAÇÃO DIRETA DOS CIDADÃOS NA TOMADA DE DECISÕES

A representatividade deve ser vista como um conceito abrangente, que permeia todas as esferas de governo, desde os ministérios, prestação de contas e transparência, comunicação pública, até mesmo o direcionamento de recursos para políticas públicas. Nesse sentido, o Plano Plurianual Participativo, atualmente em fase de consulta e votação, surge como uma das alternativas viáveis para engajar a sociedade de forma direta no planejamento orçamentário do governo e restabelecer um diálogo efetivo sobre as prioridades da população. Da mesma forma, a iniciativa governamental de retomar os Conselhos de Participação Social representa um passo inicial no sentido de restabelecer laços colaborativos com os movimentos da sociedade civil, que almejam influenciar a formulação das políticas públicas. É importante ressaltar que o funcionamento desses espaços deve ser pautado pela democracia e pela efetividade, a fim de garantir sua relevância e impacto no processo decisório.

Esta conversa deve se estender para além do governo e estar enraizada de igual forma em todos os processos legislativos. Um exemplo de sinalização neste sentido é o plano de trabalho da CPI dos Atos Golpistas, que inclui como um dos pilares do processo investigativo a disponibilização de todos os documentos referenciados durante a Comissão em uma plataforma aberta, acessível para consulta pública. Ao incorporar a ideia de participação cidadã no próprio modus operandi das ações do Congresso, reafirma-se o compromisso com o fortalecimento da confiança pública na democracia. É necessário trilhar esse caminho para superar a desconfiança no sistema eleitoral e nas instituições, causa do sentimento antidemocrático que levou aos atos golpistas que deixaram marcas profundas na história do país.

Nesse contexto, a dedicação contínua e profunda com a garantia da representatividade surge como uma resposta ao desencanto político e ao enfraquecimento da cultura democrática. É a forma mais robusta e essencial de blindar a democracia, que foi arduamente construída ao longo das últimas décadas e está em constante aprimoramento, especialmente no que diz respeito à participação cidadã. Ainda há tempo para evitar retrocessos que possam frear o avanço da diversidade na política brasileira e perpetuar o sentimento anti representativo em relação aos poderes da república e aos partidos políticos. É necessário empenho incansável nesse sentido: há um espaço inédito para o desenvolvimento de processos inovadores de engajamento cívico, visando a construção de um ambiente democrático fortalecido pela vontade de todas as pessoas.

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